A Crônica: As não especificidades – Andreia Donadon Leal

Andreia Donadon Leal

 

As não especificidades

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — “Até?!” Alguém murmurava.

Olhava o movimento monótono dos ponteiros do relógio no pulso. Nada adiantava focar no horário que parecia girar com extrema má vontade. Não sei os motivos que movem o tempo, às vezes, veloz feito um tiro; outras, devagar quase parando. Esperar faz parte, ter paciência para esperar faz mais parte de planejamentos de quem não quer se aborrecer, com atrasos de voos que aguardam trégua do tempo nublado e chuviscoso. Olhei o painel: voo atrasado. Conferi outras rotas e empresas áreas: voo cancelado, voo atrasado, voo cancelado… Criança de cinco ou seis anos se entretia com jogos em um aparelho que não consegui identificar. Mãe lia revista. Sala de embarque apinhada de gente. Turma de estrangeiros conversava animadamente, sentados no chão, com mochilas coloridas nas mãos. Abri a bolsa. Tirei o livro para prosseguir a leitura. Interrompi, ao escutar pela segunda vez, a palavra:

“Até”?

Acho que a moça, sentada ao meu lado, tentava me perguntar discretamente, o significado do vocábulo. Olhei-a de rabo de olho, aguardando nova investida. Perguntou, falando para o celular:

“O que significa ATÉ, hein? Não entendi!”

“Desculpe, você me perguntou alguma coisa”?

“Sim, senhora. Se não se importa. Estou atrapalhando sua leitura?”

Imagina. Prefiro ambientes silenciosos e solitários para me envolver profundamente com tramas e personagens de livros. Barulhos, conversas e intensa movimentação tiram minha concentração. Senhora é pronome de tratamento que não me agrada muito; apesar de ter passado dos quarenta, ainda me causa estranheza ser tratada dessa forma. Mas sempre considerei de péssimo tom, o ser tratado, dar resposta de que SENHORA está no céu.

“Não, moça. Pode perguntar!”

“O que significa até”?

“Depende do contexto.”

“Contexto?”

“Depende do lugar, da situação, das pessoas envolvidas…”

“Mas o que significa, de fato, ATÉ”?

Olhei-a profundamente, já que tinha motivo para isto. Quanta insegurança na voz da jovem que ora me perguntava, ora mirava o celular de forma desoladora e insistente como se aquele aparelho fosse uma pessoa importante. Alguém, intuí, do outro lado daquele aparelho, deve ter respondido à garota um ATÉ, que a deixou encafifada e insegura. Provavelmente um namoradinho.

“Quem emitiu a palavra ATÉ para você”?

A garota olhou o ambiente repleto de passageiros entretidos em suas conversas e em seus aparelhos tecnológicos. Ninguém prestava atenção nela ou em mim.

“Não é bem meu namorado, sabe, senhora! É um rapaz que conheci. Gosto pacas. Marcamos de nos encontrar hoje, depois que eu chegar de viagem, mas aí apareceu compromisso de última hora… Ele falou do compromisso, terminando com um ATÉ, sem dizer mais nada. Estou aguardando nova mensagem dele há mais de duas horas, definindo se a gente vai se encontrar mais tarde ou depois! Então fiquei na dúvida com o ATÉ…”

Pacas? Meu Deus, imagine se eu lesse apenas a expressão “gosto pacas”, sem saber do contexto? Provavelmente pensaria que alguém gosta muito do roedor de hábitos noturnos, pelo eriçado e duro…

“Bem, antes era mais fácil analisar uma palavra ou expressão, pois a conversa era ao vivo. Ele ligaria e você poderia saber pelo tom de sua voz, se era desculpa esfarrapada ou não. Agora decifrar linguagem de torpedos, minha cara, fica difícil, muito difícil. Na minha época, era o bolo propriamente dito sem avisos prévios, ou um telefonema. Mas ATÉ é inespecífico! Pode ser: boa noite, até amanhã, até depois de amanhã, até não sei quando, até mais tarde… Pode ser que ele lhe procure depois, deixando agora o dia em aberto. ATÉ, pode ser tanta coisa e nada ao mesmo tempo”.

Acho que não ajudei muito. A moça olhou-me desconsolada. Tive pena. Pensei nos bolos que recebera na adolescência; nas dúvidas, inseguranças e ansiedades típicas da época.

“Você tem o número do telefone dele! Por que não liga?”

“É muito pessoal, não?”

Engoli o suspiro e a impaciência.

“Você tá ficando com o rapaz, não está? Isto já é pessoal e íntimo, certo?”

“É sim, tipo meio íntimo. A senhora tem razão!”

“Então vai movimentando seus dedos e ligue pra ele. Analise, pelo tom de voz, se ele está falando mentira, ou pretende procurá-la mais tarde. E não pergunte o dia! Deixe em aberto, caso ele não marque. Ok? E tente não sofrer por antecipação”!

“Ok, obrigada pelo esclarecimento! Vou pensar a respeito…”

Disse de forma insegura. Meu voo foi confirmado. A funcionária da empresa aérea convocou os passageiros para o embarque imediato.

“Não custa nada tentar. Boa sorte!”

Caminhei até a fila de passageiros. Esperei minha vez. Mostrei bilhete e documento de identidade. Passei pela porta de vidro. Não tive notícias da jovem sem nome, aliás, não perguntei sua graça. Vi a moça, antes de entrar no finger, conversar com alguém no celular. Não sei analisar as não especificidades de várias palavras. Vocábulos inespecíficos são como o tempo, com seus lapsos de vaguidão. Se deu certo ou não o aconselhamento, poderia intuir que sim pela imagem. Se ela conseguiu analisar o tom de voz do rapaz, isto eu não iria saber agora, amanhã ou nunca. Talvez um dia, quem sabe, mas um dia é tão inespecífico e em aberto, quanto ATÉ…

 

Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.