A Crônica: Colotal e os três ex-moradores da Rua Maria Carolina — Andreia Donadon Leal

Andreia Donadon Leal

 

Colotal e os três ex-moradores da Rua Maria Carolina

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — Era para ser um fim de semana como outro qualquer, de puro deleite de não ter que cumprir horários rígidos ou cargas horárias da labuta diária. Final de semana marcado para encontrar familiares na casa da matriarca. Nada de nostalgia, pois tínhamos privilégio de promover encontros com irmãos, sobrinhos, cunhados e amigos, na casa 208, sem impeditivos de ordem maior. Mas aquele final de semana anunciava cheiro de flores. Se bem que a chegada da primavera tem compromisso em liberar fragrâncias adocicadas no ambiente urbano. A explosão de pétalas de rosas adolescentes enchia olhos e olfato. Final de setembro: despejamento de águas brandas ou severas do céu; ora frio, ora calor. Indefinições de temperaturas, que certamente tinham seus arranjos democráticos lá do alto, para surgirem com objetivo de participarem da estação florida. E nesse final de semana de revezamento de temperaturas e explosão das primeiras flores, cheguei à cidade, com roupas e livros na mala, preparada para visitar algumas casas da Maria Carolina. Mirei moradias que, desde minha infância, frequentei, com deleite abençoado da melhor amizade. As contíguas, do lado esquerdo e direito da casa de mãe, vazias. Nenhuma alma viva, falante, gritante a contar como foi o dia. Amanheci em processo de nostalgização. Não, não, as outras não estão vazias! Nem todos se mudaram porque morreu algum ente da família. Alguns porque os filhos cresceram, tomando seus rumos, outros porque ficaram viúvos. Lembrei-me de três ex-moradores; homens magníficos e esplêndidos, com formas peculiares de viver. Simples pais de família, trabalhadores, fortes, cada um com trajetória específica. Amigos que se sentavam no banco de ferro chumbado na casa dos compadres, para trocarem culminâncias do dia. Assim se chamavam Didi, Vicente e Geraldo, moradores daquela rua. Olhei o banco, agora ocupado por um dos mais conhecidos e populares moradores da cidade, João L. Valentim, vulgo Colotal; vestido com antigo uniforme e boné da Polícia Militar, apito, com crachá de identificação; fumando seu costumeiro cigarro de palha. O cidadão assoviou ao me ver parada, mirando as casas, com olhar perdido e avoado.

“Ô, morena! Morena”?

“E aí, João? Falei avoada.

“Tá diminuindo cada vez mais, né?”

João sempre me chamou assim. Após três décadas transcorridas, pensei que ele havia se esquecido de minha pessoa. Poderia ser artimanha de sempre, pois costumava chamar todas as moças dessa forma.

“O que tá diminuindo, João?”

Caminhei para perto dele, sentando-me ao seu lado no banco chumbado.

“Ué! Tá maluca, morena? Outro dia morreu Vicente. Homem bom, sempre me deu café. Mas depois que se mudou daqui, foi rapidamente lá pra cima. Tá vendo lá? – Apontou para o céu – A mulher dele se mudou daqui; casa tá vazia. Não se lembra? Tá maluca?”

Confesso que ri com a explanação impecável. João, morador especial, vivia andando de um lado para o outro, sem rumo e horários definidos. Às vezes, era visto empurrando um carrinho pé de porco com buzina de plástico, carregando em seu interior, relógios quebrados e outras bugigangas indefiníveis. Tudo seria desmontado por ele, que pouco tempo depois, passaria de casa em casa, pedindo relógio velho, dinheiro, comida, café e água. Era cíclico. Pouquíssimos moradores despachavam João da porta de suas casas, sem a menor cerimônia e compreensão de sua especialidade. Nas minhas contas, ele deveria ter 80 primaveras. Tinhoso, não deu o braço a torcer, conversando comigo como se me reconhecesse perfeitamente:

“Depois foi seu pai, né, morena? Levei flores pra ele, no velório. Didi era bom demais pra mim.” – Colocou a mão no bolso da camisa retirando a caixa de remédio controlado –. “Tá vendo isto? Ele sempre comprava pra mim. Nem sabia, né? Se eu ficar sem tomar, fico com problema. Quero morrer não! Tá doido, sô! Nem me formei pra Polícia Militar, ainda! Continuo avisando pros homens sobre o andamento das mortes. E você continua lá embaixo?”

João me surpreendeu com sua memória colossal. Até eu havia me esquecido que trabalhei lá embaixo (Prefeitura). E sim, ele se lembrava de mim, do pai e dos moradores daquela rua.

“Mudei daqui, João!” Disse ainda incrédula com a memorização dele.

“Agora atrapalhou tudo, hein? Tá sem emprego, morena?”

“Não! Trabalho em outra cidade.”

“Ah, bom!”

“O que você tá fazendo aí?”

“Ué, rezando pra alma de Seu Geraldo. Mais outro desta rua! Pedi água pra dona dele. Homem bom, sô! Sempre me deu café com leite, e um pedação de queijo, que ele fazia tão bem!”

“Pois é, João! Estava pensando nos moradores que se foram!”

“Você tá fazendo o que, morena?”

“Sou escritora”. Disse mostrando os livros.

“Isto aí eu não entendo não. Nem sei ler, também. Tudo letra misturada. Quem faz coisa misturada é doido. Então agora você ficou maluca de vez, é?”

“Isto mesmo! Escritor é meio maluco. Cada um com sua compreensível maluquice…”

“Quer tomar um comprimido? O médico falou que ele cura maluquice. Mas de vez em quando, esqueço de tomar.”

“É, eu já vi do jeito que você fica, quando se esquece de tomar o remédio!” Sorri, me lembrando dos palavrões e da cara de poucos amigos, que ele fazia para os moradores, quando se esquecia de tomar os comprimidos.

“Agora sem Didi, Vicente e Seu Geraldo, a coisa vai ficar muito pior! A rua tá ficando maluca também. Vai chover. Olha lá no céu! Deve ser coisa daqueles três malucos, que se encontraram lá em cima.” Sorriu exibindo a boca desdentada.

Concordei. Levantei-me do banco. Águas começaram a despejar do céu, de forma branda. Convidei-o para almoçar. Ele disse não, pois tinha que visitar outras casas, para ver se conseguia novos relógios para desmontar, além de ter que passar mais tarde no Posto da Polícia Militar, para dar notícias aos companheiros de labuta.

A rua estava ficando meio triste. Sem definições de dia, hora e estação, um morador se despia do invólucro carnal; uns com aviso prévio, outros de uma hora para outra. Ali, na Rua Maria Carolina, vivos compartilhavam perdas, dores, nascimentos e alegrias. Ali, na rua, águas brandas ora severas, despejadas do céu, seguidas de indefinidos passamentos, com escolhas democráticas dos próximos moradores, que viveriam definitivamente na estação florida do céu…

 

Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.