A Crônica: Ensaio de um constrangimento de um menino de 5 anos ao ser revistado pela professora — Andreia Donadon Leal

Andreia Donadon Leal

 

 

Ensaio de um constrangimento de um menino de 5 anos ao ser revistado pela professora

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — Não era sonho, daqueles bons que a gente fica com desejo que perdure para o resto da vida, mesmo sabendo da sua essência efêmera. Era pesadelo ao vivo e a cores. Pesadelos, daqueles brabos, que você pensa que está sendo alvejada somente no sonho ruim, mas nada de sonho, era realidade vivida e vívida mesmo, sendo contada na minha cara, sem cortes, pausas e censuras. Com muitos erros de pronúncia (normal para a idade do gurizinho), no meio de um choro sentido, que espatifou o órgão mais importante do meu corpo, que anda meio desiludido e endurecido pelas traulitradas da vida. Mas até aí tudo bem, sou crescida, capacitada, maior de idade, defensora ferrenha de direitos humanos. Longe de mim, então, desejar relatar triste episódio contado por uma criança neste texto. Longe de mim, querer colocar lenha na fogueira. Longe de mim, querer colocar gasolina em incêndio já acentuado. Longe de mim, querer julgar o ato em si, antes de o leitor querer me atirar a primeira pedrada. Mas vou contar; vou relatar, sim! Da forma que melhor me aprouver: no fingimento da ficção, que muito tem a ver com a realidade. Conto sim, pelo fato de não ter filhos de sangue, mas contato frequente com crianças e adolescentes de escolas públicas e particulares, que porventura leram meus livros, e me convidaram para um bate-papo sobre leitura e criação literária. Já escutei de tudo um pouco. Casos bacanas, dignos de notas e mais notas; histórias de superação através da leitura e da literatura; outros tristes que contavam auguras de famílias, casos de paixonites mal sucedidas, bullings, brigas, etc, que mereceram alertas para pais e educadores. Nada fora do esperado, até… Até um dia, apesar de a primavera se anunciar imponente com seus ipês resplandecentes, enfeitar o cenário urbano com suas flores mega coloridas, tornando tudo meio mágico, as trevas surgirem imponentes no relato de um menino de 5 anos, que afastou bruscamente do meu campo de visão, aquele dia ensolarado e perfumado. Trevas tomariam conta de todos os espaços físicos da rua e dos batimentos do meu coração, agora acelerado e descompassado pelo teor desolador do guri, que me contaria um ensaio.

“Posso fazer um ensaio meu pra você, tia?”.

Foi bem assim que ele me interpelou, sem subterfúgios. Pensei, o guri já está usando a imaginação por causa dos livros, que lhe dou frequentemente. Crianças têm imaginação fértil, que extrapolam a dura realidade que nos circunda. Quem sabe é um caso extraordinário? Lembrei-me da obra. E o pensamento foi certeiro, não a extraordinariedade do fato, mas o repulsivo extraordinário do caso, que o menino de 5 anos me contaria nos instantes seguintes. O pequeno começou a narrativa (o seu ensaio), me convidando para a varanda (local mais apropriado para bate-papos confidenciais). De chofre começou:

“Era uma vez, um menino chamado Nícolas. Ele tinha alguns amiguinhos no colégio. Lá ele desenhava, brincava, coloria, ouvia histórias… Na hora da merenda, Nícolas se sentava com seus coleguinhas para lanchar. Mas antes todos cantavam uma música bem bonitinha. E aí, a professora falava que os coleguinhas poderiam sentar e comer suas frutas e biscoitos. Às vezes, Nícolas trocava de merenda com seus amiguinhos. Aí um dia, o coleguinha dele apareceu com a mesma garrafinha de água. Era toda colorida, muito igualzinha. Tão igual que eles nem sabiam qual era de quem. Um dia, Nícolas nem sabe qual, a garrafinha do seu coleguinha sumiu. Desapareceu, mesmo. A professora dele falou que tinha visto a garrafinha desaparecida na mochila do Nícolas. Ele falou que tinha uma igualzinha. Nícolas chorou quando a professora falou que ele tinha pegado a garrafinha de seu coleguinha. A professora ficou muito brava. Aí, ela colocou Nícolas na frente da sala, perto de todos os colegas. Abriu a mochila dele. Jogou todos os materiais na carteira. Procurou, procurou, procurou… Nícolas ficou de cabeça baixa, com muita vontade chorar. Mas ele era um rapaz forte, corajoso, e só deixou cair algumas lágrimas. Aí a professora pegou a merendeira dele, balançou para ver se a garrafinha estava lá… Os colegas de Nícolas riam dele, falando que quem mexe nas coisas dos outros é bandido. Aí, o menino Nícolas chorou de verdade, ficando bem vermelhão. A garrafinha era igual. Como a professora podia saber se a garrafinha era do Nícolas ou do seu coleguinha? Eu peguei a garrafinha dele, achando que era a minha… Eu virei bandido?”

O guri parou de falar com aquela pergunta. Rosto corado, olhos encharcados. Olhou-me aguardando resposta. Suspirei profundamente por dentro. Que resposta eu daria para o menino? Respirei, expirei. Assombração, de vez em quando, sabe para quem aparecer. Logo hoje? Depois de um final de semana tão aguardado por mim, anunciando que vem aí a primavera? Por que ainda é inverno, tempo propício para coisas nevoentas, opacas, frias, escuras? Mas já dá caras à primavera! Por que logo no mês de setembro? Por que logo na virada de estação que floresce tudo? Pensei meio revoltada, mas controlando meus impulsos para não assustar o garoto de 5 anos, que tinha ensaiado, no linguajar dele (e não faço a mínima ideia de onde ele tirou o nome ‘ensaio’), um baita constrangimento ao ser revistado pela professora!

“Foi um erro, querido. A gente erra sempre. Mas o que vale é a gente tentar consertar os erros. Ok? Respondeu sua mãe? Peça desculpas, imediatamente. Empurrou seu coleguinha? Peça desculpas para ele, na mesma hora. E tente não fazer estas coisas novamente. Sempre que você pensar que fez alguma coisa errada, tente conversar com um adulto primeiro. Ok? E a professora do Nícolas só estava vendo se alguém tinha colocado, por engano, a garrafinha dele na mochila.

“Mas ela só olhou a minha mochila!”

O bate-papo estava saindo de minha zona de especialidade. Aquilo deveria ser conversado com a mãe dele. Olhei para o guri, que me olhava ansioso. Passei as mãos carinhosamente pelos seus cabelos encaracolados e suados. Limpei seu rostinho molhado de lágrimas. Sentei-o no meu colo. Contei-lhe que escreveria um texto bacana com o ensaio do Nícolas, e que os colégios, pais, coleguinhas e professores leriam a história do menino. Ele se animou, me perguntando, se faria isso mesmo.

“Claro que sim! E vou falar que Nícolas é um menino valente, forte, corajoso, igualzinho a você, que sabe contar histórias!”

O guri ficou em pé, espevitado, saltitante, saiu chamando seu irmão mais velho para brincar.

Não sei o que ficaria marcado na memória daquele guri; mas sei que preferiria que aquilo fosse pura ficção de um menino de 5 anos. Eu conversaria, mais tarde, com a mãe dele, para trocarmos ideias, posições e a forma menos traumática, para entender a razão da existência do relato do ensaio de um constrangimento do menino de 5 anos, ao ser revistado pela professora! Tudo daria certo. Tinha que dar. Já sinto chegar a primavera, ora! O fluxo das estações remete a um começo de novo ciclo, que representa renascimento. Neste ensaio de Nícolas, fica a mensagem para nós, escritores, educadores e pais, aprendermos a controlar nossos impulsos, para resolvermos de forma justa e saudável, problemas que surgem na lida diária, sabendo plantar sementes saudáveis e fortes, que serão capazes de se renovar com as mudanças bruscas e constantes de energias.

 

Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.