A Crônica: Geni, ardência pura ! — Andreia Donadon Leal

Escritora Andreia Donadon Leal

 

Geni, ardência pura !

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — A primeira vez que vi Geni percebi de chofre, certa inquietude submergindo do seu ser. Tentava, em vão, disfarçar poucos modos com homens. Doida por eles. Nem feia nem bonita. Despida de atrativos de beleza angelical ou satânica. No máximo e com pena, sopro minguado de alguma atratividade inespecífica. Pernas grossas, cintura fina, quadris largos. Nem gorda nem magra. Corpo na medida. Na linguagem popularizada nomeavam-na, corpo bom. O rosto não era uma tragédia, mais do que feio, menos do que horroroso. Na linha tênue entre feia e feinha arrumadinha, dali não passava. Bem arrumada, menos feinha, quando empregava base, pó compacto, blush no rosto (sem exageros), e um par de brincos nas orelhas em forma de abano. A maquiagem disfarçava cicatrizes de espinhas no rosto, criando ar de luminosidade, e mínima, mínima mesmo, beleza. Cabelos crespos sem volume e brilho; quando recebiam a marroquina apresentavam certo ar de graciosidade e leveza, na graça generosa descritiva da patroinha. Mas o que saltava de Geni eram os modos deselegantes, atrapalhados e atabalhoados. Indisfarçável forma de ser. Limpava azulejos com tanta força, a ponto de esfolar suas mãos.

“Pra que tanta força, Geni? Vai acabar se machucando!”

“Pois é necessário, patroinha. Gordura tá colada demais. Não se preocupe, dou conta de tudo brilhando!”

Apresentava intenso desejo pelo sexo oposto, deixando-a constantemente de pavio aceso. Nestes dias, a faxina surtia efeito de impecabilidade. Braçadas generosas recebiam o rodo, a vassoura e a bucha. Não sobraria sujeira sob sujeira. Dizia que estava no cio.

‘E isto é coisa de se dizer, Geni’?

Ela ria achando graça.

“Desculpe, patroinha. Mas a senhora é minha única confidente!”

Pimenta pura, Geni era daquelas aventuras que só apreciadores natos e corajosos gostam de experimentar, mesmo sabendo da ardência a posteriori.

‘Que arde, arde, mas eu gosto’!

‘Pimenta desse tipo a gente aprecia sem moderação, depois deixa voar solta’.

Ela repetia as observações dos pretendentes.

“Pois até eles lhe chamam de pimenta! E o Geraldo? Não se preocupa com ele?”

“Nada, patroinha. Geraldo é um santo. Bom pai. Escolhi bem. Ele é pro resto da vida, enquanto os outros, passa tempo. Ele sabe que eu gosto é dele”.

Teimar para quê. Geraldo manso aceitava as puladas de cerca, e não seria eu que iria me incomodar. Apesar de sempre me preocupar com a segurança de Geni.

Como água que escorre pelos olhos, quando a pimenta arde em demasia, anunciando o gran finale, os pretendentes saíam batendo os dedos, comemorando grande feito e já era. Diziam seus fãs passageiros. Os machistas que costumavam se viciar na pimenta, mastigavam-na, destacando que aguentar os trancos da Geni era para cabra macho. Inocentes imbecilizados, Geni dava pernadas neles, mostrando a arte maquiavélica de colocar de uma só vez, uma colher cheia de sopa com a mais forte pimenta, como se tivesse comendo o melhor tira-gosto da história da culinária. Perdi a conta do número de vezes que presenciei sua fala, se gabando de ingerir, com prazer indescritível, generosas colheradas de pimenta. Vi Geni bater boca algumas vezes, com homens fortes, dedo em riste, bem no meio da rua. Vi-a pular algumas madrugadas, a janela de sua casa, abandonando momentaneamente prole, para dar perdidos no forró, baile funk, e sabe-se Deus aonde mais. Deambulava por aí, em madrugadas frias, mornas ou tórridas pelas esquinas. Fumava de vez em quando. Bebia com frequência, sem ser alcoólatra. Não podia se dar ao luxo nem ao vício, pois era arrimo de família. Responsável no trabalho, quase máquina no cumprimento de atividades pesadas, mas diversas vezes costumava dar seus perdidos.

‘Cabeça hoje tá misturada, patroinha”!

Dizia quando se apaixonava por um par de botas largas e grandes.

‘Desta vez, quem é o sujeito?’

‘Patroinha, cabeça gira, gira e gira. Vou dar perdido hoje, para ver se é isto mesmo que quero. Nem sei quem é direito. Fiquei tentada’.

‘E o último?’

‘Nem tão valeu à pena. Outro dia ele me disse que sou demais pra ele’.

‘Então é por isto que você deambulava sozinha na praça’…

‘Nem sei o que é isto de deambular. Mas se a patroinha disse, é porque é coisa boa! Espiava os que saíam pra rua’.

Domingo, mais fácil para Geni. Neste dias os caras costumavam passear; não podia dar bobeira em feriado, dia de domingagem. Poderia ser que algum se interessasse por ela, ou vice-versa. Com a cabeça misturada, ninguém podia com ela. A não sutileza na declaração de que estava tentada a dar perdidos, equivalia a uma punhalada no peito do seu companheiro. Dizia ele que a dor surgia sempre impávida, queimando o resto do corpo.

‘Dói que só vendo, patroinha da Geni. Qualquer dia desses, o infarto me fulminará. Sei que não é a primeira, nem a última fugida da Geni. Mas o peito tem ardido, com os perdidos dela. A senhorinha já tentou aconselhar a mulher, mas ela é ruim da cabeça’!

‘Deixa a Geni, Geraldo. Deixe-a. Viva sua vida. Ela é assim. Isto tá no sangue’.

‘Se tá no sangue, a gente sabe que não tem volta, né! A gente aceita, mas não aceita totalmente. Sei lá, até minha cabeça se confunde!’

Geraldo suportava as maiores vergonhas em público pelos perdidos de Geni. Quem disse que ela tinha conserto? Magro ficava, quase esquelético. Ele e o filho pequeno sozinhos até três ou quatro da manhã, enquanto Geni passeava na rua, em seus dias perdidos. Suas roupas encontravam-se impecáveis no corpo. Com as pupilas dilatadas, em sinal de alerta, como um animal prestes a atacar à presa, pulava a janela. Depois de sucessivas fugas, se arrependia. Beiço caído; alguns dentes quebrados, outros arrancados, ombros encolhidos. Aperto na barriga, no peito; alma vazia, olhos opacos. Eu sempre aconselhava, aconselhava e aconselhava.

‘Geni, toma juízo’!

‘Patroinha, com quem vou afogar meus calores?’

‘Afogue suas ardências com o Geraldo!’

‘Geraldo é açúcar! Dele gosto mesmo! Afogar as ardências tem que ser com outros! Tô com a cabeça misturada. A roda anda’!

‘A fila anda, você quer dizer’?

‘Pois sim, patroinha! Tenho outro em vista’.

Em vão, sabia. Mas água tanto bate, quem sabe um dia furaria.

‘Geni, toma juízo’!

‘E como se toma? Quantas gotas por dia? Tem este remédio na farmácia? Precisa de receita?’

Ria mostrando a gengiva protuberante, dentes fracos, encardidos e repletos de falhas.

‘Juízo não se toma! Juízo é ser responsável. É saber fazer a coisa certa, comporta-se como mãe de família’!

‘Mas isto eu já tenho, patroinha. Faço tudo certo. Não deixo faltar nada em casa. Comida nunca faltou. Pago todas as contas. Geraldo sabe que sou honesta, e muito séria com estas coisas’!

‘Isto eu sei! Eu sei! Estou falando dos seus sucessivos amigos!’

‘Ah, os amigos gostam das minhas prendas, patroinha! Elogiam as coisas que faço… Nem posso falar abertamente. Fico sem jeito’.

‘Tá bom!’

‘Licença. Tenho trabalho!’ Abaixava a cabeça e saia bamboleando o quadril de um lado para o outro.

Sucessivos aconselhamentos valiam de nada. Talvez nem compreendidos, coitada da Geni, ela não sabia discernir. Escutava, escutava, fazia força para conseguir assimilar alguma coisa.

‘Cabeça misturada. Cabeça misturada!’. Esta frase já estava batida.

Quase tive má vontade de continuar a jogar conselhos no vácuo daquela cabeça, que retinha quase nada. Não culpava Geni, coitada, talento nato para o trabalho duro, para passar por intempéries e fortes julgamentos. Ela nem sabia que nem sabia de sua natureza de ser assim. Autêntica, solta, libertina, desregrada com coisas de comportamento sexual. Calejada pelas bofetadas, pelos murros, pelas cusparadas, pelos tocos, pelas viradas de caras de senhoras de família, andava bamboleando pelas esquinas de cabeça erguida, misturada e de peito aguerrido.

‘Não me rebaixo. Pouco me importa caras viradas. Não tenho medo de bofetadas e chiliques das namoradas ou mulheres dos meus amigos. Sempre falo pra elas que é coisa da carne, mas elas não entendem! Deveriam seguir Geraldo. Ele sabe das coisas’.

‘Você não ficou com vergonha de seu filho, quando tomou a bofetada da Dona Josefina, bem na porta da escola’?

‘Não roubei, não matei, não devo nada a ninguém! Não fingi, não dedurei, não falei e nem falo mentira. O Clemente é pequeno, Patroinha. Ele nem entendeu, tadinho! Dona Josefina, barraqueira! Não retribuí o tapa, porque tenho respeito pelas pessoas. Fiquei aborrecida mais por causa de ser na escola. Lá é lugar sagrado! Se fosse na rua, pensaria em descontar. Dona Josefina sabe que o marido é mulherengo. Ela sabe, mas sempre arma barraco. No fundo tenho dó dela! Nem gostei do marido dela! Nanico. Não gosto de coisas pequenas’.

Ela se defendia com estes argumentos, enquanto eu me ruborizava, quando destacou em alto e bom tom, que ele não era bem dotado.

Geni completaria mais de uma década de serviços prestados, com eficiência. Na vida apresentava previsíveis rompantes inseguros pela efemeridade de seus sentimentos. Ela, pimenta pura, aventura que só apreciadores natos e corajosos gostavam de experimentar, sabendo que a doce ardência era passageira. Quem não a compreendia, estava fadado a pensar mal sobre sua pessoa. No fundo, sem querer assumir publicamente, Geraldo e eu, aceitávamos Geni. Eu não só aceitava, mas admirava seu jeito indiscreto, autêntico, sem firulas, sem salamaleques; e sua alta e costumeira frase, ‘nem aí pra opinião dos outros’!

‘Patroinha, patroinha! Hoje cabeça tá misturada! Tá misturada! Licença, tenho muito trabalho’… Saía apressada, requebrando o quadril de um lado para o outro.

Sorri apenas. Geni é isto. Geraldo manso, reclamaria dores no peito. Mais um para a coleção da Geni, forma única de ardência genuína. Não sei quantos dentes ela teria que arrumar depois. Detalhe futuro, por enquanto, ela nem se importava.

Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.