A Crônica: Nada – Andreia Donadon Leal

Andreia Donadon Leal

 

Nada

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — Nada espetacular, especial, observável ou digno de nota. Falar sobre nada é temática interessante, mas de difícil argumentação. Não sei da pertinência do assunto escolhido, embora falar sobre nada seja tão inespecífico quanto falar de alguma coisa. – Que diferença há entre nada e alguma coisa? Nada remete a vazio, vácuo, invisível, volátil, enquanto alguma coisa, a algo de qualquer natureza, descritível, observável, visível.

– Fácil descrever alguma coisa? Nem sempre, especialmente quando a cabeça está sem inspiração, criatividade e ideias. Impossível captar tudo, pois sempre haverá alguma coisa não mencionada, mas que mereceria ser descrita, detalhada e mais explorada, ulteriormente.

Bons escritores conseguem falar de assuntos específicos ou inespecíficos com propriedade e desenvoltura, quando a inspiração surge do nada; por exemplo, estupendo poema, construído melodicamente e ritmicamente. Aparece sem avisar e, se o papel ou computador não estiverem próximos, a ideia se vai, da mesma forma que surgiu. Some momentaneamente ou por muito tempo, para de uma hora para outra, ressurgir das cinzas. É mais ou menos assim, a funcionalidade do processo artístico. Quando falo artístico, refiro-me a todo tipo de produção cultural, literária, científica, tecnológica. A arte não está apenas na arte de produzir bens culturais, mas também na invenção e no avanço do homem, ao produzir pesquisas significativas e aplicáveis. Há que ser artista para pesquisar, pois pesquisar pressupõe reinventar, analisar, recriar.

Artistas são seres extremamente observadores, que procuram sair das obviedades ululantes, para ousar, sem influências paralisantes ou ditatoriais do mercado, em relação à produção artística. Sabemos que a maioria dos produtos é criada e reproduzida em alta escala, com objetivo comercial; nada contra a comercialização, pois sem ela seria difícil sobreviver num país, como o Brasil, onde a renda da maior parte da população mal dá para o básico. Chato mencionar o salário mínimo miserável-pachorrento brasileiro, neste texto que pretende versar sobre o significado da palavra nada. Nenhuma crítica a partidos políticos, mas sim começar a falar da palavra nada, a partir de um exemplo contundente, como o significado do salário mínimo para manutenção de vida ideal do ser humano. Salário mínimo significa mínimo, é tão óbvio que é desnecessário fazer complementações. Mínimo em alimentação, moradia, educação, lazer, cultura, (viagens, nem pensar!), saúde e por aí vai. É possível ter vida ideal com o mínimo? Chegaremos à conclusão de que mínimo se assemelha a nada. Dois vocábulos que não chegam a serem sinônimos, mas próximos e íntimos, com parentesco tão estreito, que à guisa de exemplificação serve como luva.

Depois de ter relacionado, precariamente, mínimo com nada; vamos dar outro salto. Um pulo para as artes. Meu ponto de observação atualmente é o entorno da rodoviária. Não há muito que dizer, se olhos e sentidos não estiverem a fim ou com desejo de escrever sobre alguma coisa. Cenário similar, pessoas desconhecidas, conversas, lanches e baforadas rápidas; fila para compra de passagens; crianças nas pontas dos pés para escolherem guloseimas inseridas propositalmente nos balcões de vidro.

Como de costume, aguardo ônibus, sentada em cadeira de plástico, cor: vermelho-sangue. Cor vermelha é quente, berrante, chamativa, sedutora. É tão visível e destacável, que chega a ser enjoativa. Talvez, por isso, mexa com sentidos. Não sei definir o porquê da minha sensação de enjoamento com a cor vermelha.

– Vermelho sangria, vermelho sangue. Murmurei.

Cores de objetos, de paisagens ou de qualquer coisa, chamam atenção. Pessoas, conversas, sons, também mexem com sentidos. Eis meus vícios artísticos: observação ilimitada, com desejo de tentar ultrapassar o que os olhos veem em primeiro plano, ou o básico, para penetrar em searas que vão além do sentido e das obviedades. Muitas vezes, sangro para escrever. Sangue corre das veias, para escorrer livremente pela folha de papel ou pela tela. Tela e papel branco absoluto; nada em suas superfícies. Folha de papel branca à espreita de tinta da caneta e de palavras que preencham seu vazio. Tela branco gelo à espera de tintas que maculem sua brancura. Imaculados, papel e tela sem intervenções artísticas; de não houver inspiração continuarão lá, à mercê de cores e de palavras; à mercê do toque de mãos que sairão de estado estático, pois criatividade liberta-se do nada, para dar vazão à ideia e à criação.

Falar sobre nada remete também a outro estado, não ao artístico, mas ao estado de meditação ou de fuga. Prefiro a palavra fuga. Fugir, em momentos específicos, preferencialmente escolhidos, para pensar em absolutamente nada. É necessária tanta concentração para se desligar de tudo, que a sensação é similar à morte.

Primeiras concentrações para pensar em nada, ao entrar no veículo, foram às duras penas, pois cheiro de mijo vindo do banheiro do ônibus, perturbava olfato. Vozes e diálogos entre passageiros incomodavam, também. Cansada de observar, escutar e sentir, consegui finalmente desligar-me da realidade que me estressava naquele instante.

– Necessito pensar em nada!

Pensamento abandonou funções rotineiras. Corpo inclinou-se juntamente com a poltrona. Naquele instante, nada poderia ser mais perfeito do que não ter que dividir assentos da janela ou do corredor com outro passageiro. Desliguei, sem cochilar, para pensar em nada. Nada de espetacular, especial ou digno de nota. Hoje necessito pensar em absolutamente nada. Infértil e imaculada estou, como tela ou folha de papel em branco, à espreita de inspiração.

 

Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.