A Crônica: Sonhos em um Sono – Andreia Donadon Leal

Andreia Donadon Leal

 

Sonhos em um sono

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — Pai lava vasilhas do jantar sem bucha, água e sabão; na mesma cena, mãe enxuga pratos com pano de saco. Num triz, sonho muda de foco. Irmã mais nova me mostra oito vestidos de seda espalhados na cama de casal. Cores coloridas fortes, que de longe combinam com seu gosto austero. Estranhei profundamente, sem ter tempo de analisar, dentro do sonho, significado de mudança repentina. Sequência de imagens sem pausas, nem para um piscar de olhos. Esqueci de estudar para a prova de História na Literatura, e ao chegar à universidade, professor avisa que se esqueceu das avaliações. Salva pelo gongo; mas semana que vem ele aplicará prova, aumentando dois capítulos teóricos para estudo. Nem tão salva assim, penso contrariada, na decisão arbitrária do educador. A culpa, entre mim e mim mesmo, é mais dele do que minha, pois o resto da turma havia se preparado para a avaliação. Fico presa num quarto escuro e sem janela; sendo acudida pela minha tia que arromba a porta com ajuda de um bombeiro. Profissional de costas largas, braços musculosos, quase dois metros de altura. Não sei definir se é bonito ou feio, pois o homem só tem do pescoço pra baixo. Qual sentido de ele não ter cabeça? Questiono-me aturdida. Alguma relação com mulas sem cabeça? Acordo com pijama e corpo ensopados de suor. Raios do sol penetram varanda do quarto. Pássaros gorjeiam, crianças gritam jogando bola na rua. Deveriam fazer isto na quadra do bairro, penso contrariada. Olho para o despertador. Passavam das 10h20min! Ninguém me acordou. Ninguém em casa. Café da manhã, murmuro, querendo pensar de forma objetiva. Desço, tomo café morno com duas torradas murchas. Sento à mesa, com pensamento dando voltas. Quais conexões entre imagens oníricas e a realidade? Meu cérebro a mil por hora no sono! Quanta atividade para uma noite! Sono profundo tem asas abertas e criatividade excruciante, para o cérebro que junta experiências fragmentadas, criando um universo paralelo. Sonhos em sequência ativavam desejo de descobrir motivos de intensa atividade onírica. Procuro livros e revistas para me informar sobre os sonhos, sem interesse científico pelo assunto. Leio e releio artigos e entrevistas. Concordo, discordo. Tudo subjetivo. Segundo o Dr. Sérgio Arthuro, a atividade elétrica dos neurônios da superfície do cérebro mostra qual estado de consciência se encontra num indivíduo. A fase do sonho está associada, por exemplo, se a pessoa estiver em sono profundo com movimento rápido dos olhos. Procurei relações de afinidade com as mudanças bruscas de sonhos num único sono. Sem pretensão de fazer estudos sobre a temática, nem parte de grupo de voluntários estudados por cientistas, conclui que meus olhos deveriam ter se movimentado feito montanha russa, com as imagens que mudavam rapidamente. Lembrei-me nesse intervalo de um sonho que retornava em épocas distintas, ao cair de um precipício me estatelando em uma rocha. Quem disse que sonhos são manifestações de desejos reprimidos? Nem sempre! Longe de mim desejar morrer dessa forma. Deus nos livre e guarde deste triste fim! Os conteúdos do sonho continuaram a mexer comigo, para sair à procura de compreensões e relações com a realidade. Antes de sair da cozinha, anoto como as cenas apareceram. Sento-me à cadeira do terreiro; fecho os olhos, tomando sol no rosto e nas pernas. Levanto-me vagarosamente, andando de um lado para o outro, com papel na mão. Inquietação intensa. Num átimo, surgem explicações para imagens aparentemente sem nexo. Pai lavando vasilhas do jantar sem bucha, água e sabão, no entanto, lavando, é igual à sua despedida do invólucro carnal, há oito anos. Irmã caçula exibindo vestidos de cores multicoloridas na cama de casal é igual a ela ter dado à luz a uma menina, depois de dois varões. Esquecimento em estudar para a prova de História na Literatura, não tem nada a ver com a disciplina, mas ao meu interesse em cursar outra matéria. A reação punitiva do professor que se esqueceu de levar as provas, aumentando dois capítulos para avaliação, é igual à minha revolta ao trancar disciplina, pois ele, vez ou outra, decidia mudar o dia de aula, inviabilizando minha presença. Ficar presa no quarto escuro sem janelas, sendo salva por bombeiro forte e sem cabeça, é igual ao passamento do marido da minha tia, homem forte, agitado e teimoso feito uma mula! Acabei encontrando o motivo de ele aparecer sem cabeça.

Saber os conteúdos dos sonhos e como eles se relacionam com a vida real, é igual a desejar compreender, de forma plausível, cenas que em primeira mão, não apresentavam sentido. Antes os fragmentos não passavam de sombras e borrões despropositados, que surgiam no meio de um labirinto confuso e nevoento. O que vi em alta rotação de uma cena para outra, não eram o pandemônio ou a balbúrdia de outrora, mas extração de experiências vividas em determinadas faces da vida. Desejos, traumas, vitórias, alegrias, tristezas, perdas, etc; às vezes vivências e sentimentos misturados, outras vezes separados, tudo disparado por atividades disparatadas de pensamento liberto.

Eu compondo texto para falar de sonhos é igual a dar vozes e pernas para os sonhos, linha a linha, fio a fio, ponto a ponto…