A Crônica: Um coração meio doido — Andreia Donadon Leal

Andreia Donadon Leal

 

Um coração meio doido

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — Pediram-me para escrever sobre Josefa. Tarefa desafiadora e complexa, para alguém que viu a personalidade lá das bandas mineiras de Santa Bárbara, na infância. Vou mergulhar em lembranças desconectadas e nevoentas, para tentar transcrever literariamente e da melhor forma possível, peripécias dessa figura intrigante e exótica. A primeira vez que vi Josefa, assustei-me com seu figurino impregnado de cores; roupas esvoaçantes, berrantes; blusas com lantejoulas; saia comprida; colares enormes dando voltas no pescoço delgado; pulseiras nos braços, e anéis em quase todos os dedos. Poderia ser confundida com uma cigana à primeira vista, se não fosse o modo autêntico de sua popularidade mais do que conhecida e falada pelos adultos, que extrapolava classificações. Meio doida, meio exótica, desconhecedora de limites e criticidades. O rosto exibia maquiagem carregadíssima, que na época causava-me espanto, ao mesmo tempo, admiração (cores berrantes sempre seduziram meus olhos). Faltavam-lhe poucos dentes; mas nem por isso, disfarçava falhas visíveis no sorriso escancarado e meio rasgado. Ás vezes, ria e cantava tão alto, de boca aberta, que fazia visível úvula no fundo de sua boca. Ela nem se importava, pois o hemisfério não dominante de seu cérebro não funcionava em plena harmonia ou conectividade com o dominante, este último responsável pela lógica, análise e pensamento crítico. Sua linguagem, meio atropelada e musicalizada, cumpria, a seu modo (não a pedido do proprietário, que nunca se importou com a presença dela), o objetivo de seu exotismo, na porta da loja mais popular da cidade: anunciar produtos e fazer troça com os conhecidos. Foi lá que a vi, figura zanzando de um lado para o outro no passeio, com um microfone invisível na mão, anunciando promoções do Baratão, e fofoquices da cidade. Ora anunciava, ora cantava, ora falava o nome e caso de pessoas, com forte inclinação linguística para a poesia, com uso contínuo e acertado, a seu modo, de rimas:

– Hoje é bota fora! Balcão cheio de saiotes. Balcão cheio de blusinotes. Balcão com calçotes de todos os tipotes.

Ou

– E aí, seu Elias? Brigou hoje com o prefeito Messias?

– Que beiço é este, Didi? Já sei, deu muitos beijos na Aparecida! Quanta semvergonhice! Cuidado com sua zarolhice!

Cheguei a pensar que ela era responsável por atrair clientes, para adquirirem mercadorias em promoção. De mãos dadas com meu pai, que me mostrou a espalhafatosa Josefa, explicando-me que a mulher não pegava crianças e nem fazia sabão com elas, e que em todas as cidades havia pessoas daquele tipo.

– Desse tipo, meio doida?

– Não é doida! É seu jeito de ser. Nasceu assim. Nunca fez mal a ninguém. Revidou algumas pedradas que recebeu de uns moleques! Ela só fica na porta do Baratão anunciando, cantando, dançado, e de vez em quando, no passeio do Fórum, esperando o Promotor.

– Promotor? Ela tem medo de ser presa?

– Ela não sabe exatamente o que fazem as autoridades. Mas leva quitudes para o Promotor, porque ele defendeu-a de pedradas da molecada. Ele chamou os pais dos meninos, sentenciando que qualquer pessoa que jogasse pedra ou água em Josefa teria que recebê-la em sua casa, durante duas semanas, para fazer três refeições por dia, e escutar suas estórias. O Promotor tinha cuidado e carinho por Josefa. Ela dava importância à proteção recebida da maior autoridade da cidade. Isto ela sabia! Toda maldade que via, falava que contaria para o promotor. Compreendeu?

– E ele não fica com medo de ficar conversando com ela? Eu tenho!

– Ele sabe que ela é inofensiva. Ela gosta que lhe deem atenção e carinho. Não precisa ter medo dela. Quem te contou que ela faz sabão com crianças tá falando mentira!

O motivo de tal explanação era pelo fato de pai ter visto alguns moleques da cidade jogarem pedras e água na Josefa, além do meu medo exagerado de passar perto dela. Mesmo com toda explicação de que ela não atacava ninguém, eu evitava o passeio do Baratão, ao retornar da escola para casa. Olhava-a de rabo de olho, sem ousar encará-la; até que num fatídico dia, tomei um dos tombos mais feios e hilários da minha vida. Mochila e merendeira voaram de minhas mãos, para o chão. Tropecei duas vezes, antes de torcer o pé e cair diretamente na rua coberta de seixos pontiagudos. Com vergonha do tombo e da dor sentida, esperei estirada no chão, acudimento de uma alma viva. Josefa! Josefa, não, pelo amor de Deus! Pensei. Josefa, primeira testemunha ocular do estabacamento em via pública, prontificou-se imediatamente, parando seu ziguezague anunciativo no passeio do Baratão. Amedrontada, fechei os olhos, tapando o rosto com as mãos. Ela se dirigiu rapidamente, perguntando-me se eu tinha machucado. Balancei a cabeça, afirmativamente. Apanhou minha mochila e merendeira do chão, levantou-me em seguida, sem dificuldades. Ordenou com sua voz musicalizada:

– Levante o pé machucado! Vamos até a sua casa, com você pulando igual a um Saci Pererê, enquanto eu cantarolo, viu Bererê? Faz de conta que estamos indo para a festa na floresta. Bora, sua nanica, cara de mexerica!

Eu pulando feito um saci, ela cantando despreocupadamente:

– Eu vou, eu vou, pra casa da nanica, agora eu vou… Tararará, tararará, rará, rará… Eu vou, eu vou…

Fui pulando, com o pé sadio, de braço dado com Josefa, que me escorava, até a casa de meus pais, com o coração disparado, mas salva e guiada com todo cuidado e atenção da ex meio doida… Nunca mais deixei de passar no passeio do Baratão, para cumprimentá-la ou levar-lhe um agrado. Josefa não fazia sabão com meninos, nem era agressiva com as pessoas que lhe respeitavam. Ela só tinha um hemisfério do cérebro, mais febril e operante do que o outro. Cativante, estranha, artística, subjetiva, não desvairada, com estupenda capacidade de usar o hemisfério não dominante, sem dar a mínima bola para convenções. Ela se foi, mas em cada passeio visualizado das lojas mais populares de cada canto do país, lembro-me de sua figura colorida e impagável a dizer:

– Balcão cheio de saiotes, blusinotes, com calçotes de todos os tipotes!

– O moço qué calção? Entra no Baratão!

 

Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.