O fim do mundo na visão de João
Andreia Donadon Leal
MARIANA [ ABN NEWS ] — João levantou com gosto de cabo de guarda-chuva na boca, estômago enjoado, indisposto e com dor de cabeça. Cambaleou até o banheiro, errando a mira do vaso, ao tentar urinar. Espiou o relógio no pulso, 5:30. Suspirou aliviado. Deitou novamente, acertando o horário do despertador, para o trabalho. Nunca perdera um dia de labuta. Teria mais 1:40 para dormir. Pegou no sono imediatamente, se esparramando no colchão. Roupa de cama encardida por vômitos antigos e atuais, espalhada no chão; roupas sujas misturadas com limpas, emboladas na caixa de papelão. Colchão puído por traças e baratas; restos de comida no chão; garrafas de vidro e de plástico enfileiradas por todo o canto da casa de 4 cômodos. Tinta e reboco caíam da parede mofada e umedecida, impregnando o quarto com um mau cheiro enriquecido e mesclado de chulé com fedor de roupas sujas, vômito, restos de urina e álcool. Sonhou com a ex. Trabalhadeira, bondosa, mas não aturou suas bebedeiras. João, cabra de família pobre, honesto; nunca encostou um dedo na esposa, apesar de a literatura sempre falar que bêbados costumavam ser agressivos com os conjugues. Com ele não. Nunca bofeteou nem encostou a mão na Maria. Covardia só fazia com ele. Trabalho, sua outra paixão. Nunca bebeu uma gota de álcool no estabelecimento. Garçom-chefe era exemplo para funcionários, clientes e proprietários. Exercia a função com esmero, apesar de tentar disfarçar a tremedeira que começava a lhe incomodar. O despertador tocou ruidosamente. João levantou catando cavaco, tropeçando nas peças de roupas sujas jogadas no chão. Soltou um palavrão. Bateu na boca. Entrou no banheiro, desligando o chuveiro. Água fria é potente para tirar o sujeito da ressaca. Olhou para o espelho quebrado. Olheiras profundas, pele desbotada, rosto chupado, rugas por todos os lados. Não tinha completado trinta anos, e nem tivera uma cria. Procurou roupas limpas na caixa de papelão. Quanta bagunça e mau cheiro, pensou. Assim Maria não retornaria para casa. Vestiu a roupa menos suja. Coou café forte. Tomou fazendo careta. De hoje não passaria. Ganhou as ruas, com pensamento fixo.
‘Deus há de me ajudar’!
Orou baixinho, caminhando vagarosamente. Trabalhou, atendeu, serviu, limpou, sorriu. Seguiu outro percurso no fim do expediente, para chegar à casa, sem passar pelo bar. Orou fervorosamente. Chegou ileso. Arrumou o quarto, abriu a janela para tirar a inhaca. Separou roupas sujas para lavar. Limpou outros cômodos. Abriu a geladeira, jogou a comida mofada e azeda fora. Tremeu, xingando a tremedeira. Concentrou-se no serviço de limpeza.
‘Quanta porcaria acumulada’!
Jogou as garrafas vazias e cheias no quintal. Entrou cansado, tremendo de frio. Tomou banho com água morna. Suou horrores. Tapeou o estômago com pão velho e água. Dormiu profundamente sonhando com Maria. Até o 4º dia João trabalhou, atendeu, serviu, limpou, sorriu, indo embora do trabalho seguindo novo caminho. No 5º dia, no meio do expediente, limpando a janela do restaurante, olhou para o céu cinzento com nuvens em movimento contínuo. Cansou de procurar figuras de bichos nelas, quando era moleque. Espiou fixamente, com saudade da infância, até começar a gritar assustado, soltando saliva pela boca:
‘Hoje? Como hoje? Ninguém tá preparado! Como pode fazer isto?
Voltou a atenção para os clientes, colegas de trabalho, que o olhavam assustados.
‘Podem parar de comer! Andem! Vamos pra um lugar seguro, longe daqui! O Criador acabou de soltar os anjos. Escutaram as trombetas? Hoje, logo hoje, é dia do juízo final. Acabou! Fim de linha. E Maria?! Ah, Maria nem me viu são! Nem ficou sabendo que parei de beber! Alguém contou pra ela? Chamem a Maria, por favor! Tenho que contar tudo pra ela! Sugigava colegas, clientes e proprietários, até começar a chorar compulsivamente. Desmaiou.
Acordou num ambiente totalmente branco. Levantou a cabeça da cama que girava, girava e girava. Maria estava ao pé da cama, olhando-o.
‘Já acabou tudo? Você voltou pra mim?’
‘Fique tranquilo, João. O médico já vem. Foi só uma confusão… Você será atendido’
‘Confusão? Que confusão? Já explodiu tudo? Isto é o outro lado? Ah, sim! Por isto tudo branco! Entendi! Só não estou entendendo o médico nisto! Ei, Maria, por que estou amarrado? Não pequei pra ficar preso! Deus me colocou aqui?’
Maria olhou com pena para João, que chorava compulsivamente. Não conseguiu fazê-lo parar de beber. Rapaz de família boa, trabalhador, mas a cachaça, sua grande perdição. Maria cansou de ir, voltar, ir e voltar para João. Uma internação ajudaria, mas ele, cabra teimoso, sempre teve horror a clínicas.
Maria ao pé da cama, sussurrava para João, que tudo daria certo. O médico entrou. Sentou do lado do paciente com uma prancheta. Mediu pressão, temperatura; auscultou coração. Pigarreou.
‘Tudo normal! O que o senhor está sentindo?’
‘Nada, doutor!’
‘Como nada’?
‘Nada, ora! Só recebi uma notícia que o mundo vai acabar!’
‘Vou lhe medicar!’
‘Pra quê, se está tudo normal?’
‘Pra relaxar!’
‘Pra me deixar dopado, o doutor quer dizer! Não adianta, o mundo vai acabar mesmo assim! Posso, pelo menos, falar?’
‘Claro, João. Estamos aqui para lhe ajudar!’ Disse o médico olhando para Maria.
‘Vivi o maior tempo da vida dopado pelo álcool, né, Maria? E logo agora que resolvi parar e o mundo vai acabar, lá vem o senhor querendo me levar a continuar no mau caminho? Isto aqui não é o céu, é o inferno! Deus não me perdoou!’ Começou a chorar baixinho.
‘Quanto tempo o senhor não bebe’?
‘Há quase uma semana!’ Disse orgulhoso.
‘Hum… Entendo’. Balançou a cabeça olhando para Maria, novamente.
‘O doutor não viu o céu hoje’?
‘O que tem o céu, João’?
‘Viu a fissura’?
‘Não!’
‘Não viu que o céu está rachando’?
‘Não! Não vi nada’!
‘Não disse? Eu disse que não preciso de remédio, doutor! Eu já disse! O senhor é que está precisando de um médico com urgência. Está ficando cego! Que pena do doutor, Maria! Coitado!
Maria e o médico deram passagem para dois enfermeiros que entravam no quarto, com injeções de Haldol e Fernegam. João se debateu ao vê-los, gritando revoltado.
‘Diacho de vida! Ninguém deixa a gente ficar de cara limpa! Queria estar sóbrio quando o mundo acabar! Saem de cima de mim! Lá vou eu, dopado pelas drogas do doutor cego! O mundo vai acabar assim mesmo! Difícil aceitar, eu sei! O problema do homem é querer calar os que sabem! Saudade de ver o céu aceso pelo pavio da cachaça, ao invés de vê-lo rachado pelos meus olhos sãos. Pelo menos vi duas faces dele, triste mesmo é o doutor, que além de estar ficando cego, duvido que já diagnosticou a lua, o céu, as nuvens e o sol…’
Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.