Ninguém nasce sabendo
Andreia Donadon Leal
Para Jaqueline Thiersch
Lá na casa de mãe, as atividades domésticas sempre foram divididas, segundo a faixa etária da prole. Para a que nasceu primeiro, cabia a nobre missão da culinária; o que acabou lhe dando baita experiência e traquejo para engendrar pratos dos mais simples, aos mais sofisticados. Ela tinha (ainda tem) fortíssima criatividade e facilidade para o exercício da função. Vocês poderão me perguntar se ela se profissionalizou na arte da culinária. Não! É professora de Língua Estrangeira em escolas públicas.Além da artimanha nas tarefas da cozinha, sempre teve forte inclinação para a Educação, incluindo facilidade para aprender e ensinar idiomas.
Eu, um pouco mais nova, porém na idade de ajudar nos trabalhos domésticos, fui escalonada para atividades de limpeza e passação de roupas. A limpeza era destinada aos banheiros, à casa, ao terreiro, excetuando a cozinha, que ficava a cargo da mais velha, que era auxiliada por mãe.
Pelo correr das linhas deste texto, fica notório que sempre me afastaram da cozinha, propositalmente, e não pelo fato de não ter traquejo para pleno exercício das atividades relacionadas à culinária (elas não poderiam saber, pois nunca haviam testado meus dotes!).
Minha genitora e irmã jamais poderiam prever, que à não escalação, iriam me afastar, definitivamente, de quaisquer tarefas relacionadas à arte de cozinhar. Talvez aí esteja um dos motivos do pânico das atividades relacionadas à nobre missão de cozinhar.
Há trinta anos, fujo de todas e quaisquer tarefas relacionadas ao cozimento de qualquer alimento. O primeiro contato foi catastrófico. Ainda não consegui extirpar o vexame histórico, que a família tem satisfação em lembrar, da primeira refeição feita por mim. Não propriamente uma refeição, mas tentativa frustrada, com desejo de tentar ajudar mãe e irmã, que foram convocadas, às pressas, para auxiliarem no velório de conhecido da família.
Prontifiquei-me imediatamente para realizar o almoço, afinal tinha visto, pouquíssimas vezes, minha irmã e mãe, prepararem refeições. Não teria nenhum mistério ou bicho de sete cabeças, que me impediria de executar a missão. Minha mãe olhou-me de esguelha, anuindo, com meu desejo de ajudá-las. Uma refeição para cinco pessoas! Ora, eu daria conta de fazer isto. Não daria?
Espiei, ansiosa, a geladeira, quando as duas sumiram de vista. Salva pelo feijão prontíssimo na panela, pensei alegremente. Cozinhar feijão, para mim, seria complicado, pela falta de experiência em mexer na panela de pressão. Quantas vezes ouvi mãe prevenir minha irmã mais velha, de que se ela não tirasse toda pressão do bico da panela, ela poderia arrebentar na cara dela? Deus me livrou dessa! Eu de longe sabia como tirar a pressão da panela, antes de averiguar, se o feijão estava cozido ou não; sem contar que tinha, ainda, aquela coisa da borracha, que segundo mãe, estava com problemas. Nunca entendi a função daquela coisa!
Abri o armário, depois a geladeira. Pensei: arroz, macarrão e frango. Feijão: esquentar. Salada? O trivial: alface, tomate e azeitona. Peguei os mantimentos, colocando-os na pia. Olhei, pensei. Tentei me lembrar, mas nada me veio à memória. Procurei no caderninho de receitas, alguma orientação para fazer arroz, macarrão e frango. Nada! Somente receitas de pratos sofisticados. Não tinha computador e nem internet, nessa época, na minha casa, e penso, que na maioria das outras residências.
Improvisar. Pode ser que o talento reprimido renascesse daquele desafio. Desafio, sim, afinal, ninguém nasce sabendo cozinhar! Ninguém nasce cozinheira, empreiteira, faxineira, arquiteta, professora, médica… Tirei o tabuleiro do armário. Untei. Coloquei o macarrão, do jeito que estava no pacote, diretamente no recipiente untado. Já vi minha irmã armar lasanha; só não colocaria queijo, presunto e carne na massa. Joguei extrato de tomate, em cima do macarrão. Liguei o forno, sem nenhuma dificuldade, colocando o tabuleiro para assar. Enquanto isso, preparei a panela para o arroz. Parei. Abri a lata, enchi quatro xícaras, colocando todo conteúdo diretamente na panela (Não, eu não sabia que tinha que lavar o arroz, antes!). Água ou leite? Dúvida perversa.
Lembrei-me de ter visto mãe fazer arroz doce. A receita deveria ser a mesma, só que em vez de colocar açúcar, eu teria que substituir por sal. Depois de despejar o leite e o sal, tampei a panela. Faltava o frango. Cortei-o da única forma plausível e possível, para mim, marinheira de primeira viagem. Algumas partes ficaram não identificáveis, mas pelo menos, consegui cortar aquilo que ainda tinha forma de animal. Coitado do frango! Fritei todas as partes, com dificuldade, enquanto o óleo teimava em espirrar na minha cara. Coloquei as partes numa travessa, já com a alface ornando as laterais. Piquei tomates e azeitonas. Depois de uma hora e meia, missão cumprida. Mesa posta! Convoquei, orgulhosamente, as quatro cobaias para degustarem meus dotes culinários. Não preciso destacar que o arroz virou uma espécie de papa sinistra e gosmenta, levando todos aos risos. Não preciso destacar que o macarrão! Ah, o perverso macarrão ficou duro, seco e queimado feito um pau! O frango nem tão ruim; um pouco duro e pegajoso. Meu pai disse, com a conhecida galhofa de sempre, que o frango poderia ser usado para abrir um buraco na parede. Sem levar muito a sério os risos e a chacota da família caí na risada junto com eles; afinal, não se nasce cozinheira, não se nasce faxineira, mas se aprende, com o tempo e interesse do indivíduo, a se tornar alguma coisa na vida. A minha, pela finalização destas linhas, fica notório que nunca foram relacionadas às tarefas culinárias…
Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.