Voos Mal Planejados
Andreia Donadon Leal
Eu queria escrever sobre o terrível acidente com o avião que levava os chapecoenses para a Colômbia. Eu queria preencher páginas e mais páginas homenageando os heróis do futebol brasileiro, apesar de não dominar técnicas para falar com conhecimento de causa sobre o esporte que libera adrenalina, lágrimas e sorrisos de milhares de torcedores. E precisa saber? Talvez não, pois paixão e emoção de grande parte da população mundial falam mais alto do que rodeios especializados e técnicos sobre o assunto. Eu queria falar sobre a dor dividida pelos brasileiros e pelo mundo, com o passamento repentino de jogadores, comissão técnica, jornalistas e tripulação. Eu queria fazer uma elegia à altura desse povo que se encantou, e encantou o povo com seus dribles extraordinários, com suas defesas espetaculares, com suas câmeras e narrações jornalísticas, que nos fazia chorar, gritar, roer as unhas, estalar os dedos, xingar ou louvar jogadores e juízes. Eu queria falar do orgulho desmedido do torcedor, que estufa o peito na rua, vestindo a camisa de seu time, como se exibisse no corpo, cada vitória alcançada pelos brilhantes jogadores. Sim, eu queria cantar os feitos desses personagens notáveis que tiveram a vida ceifada em um voo para o infinito, com bilhete só de ida. Como eu queria ter força e poeticidade abundantes para expressar os mais delicados sentimentos aos que ficaram, aos enlutados, aos familiares, aos seus filhos presentes ou que ainda estão no ventre de suas mães, aguardando o dia certo para virem ao mundo. Eu queria ter tido tempo, eu queria ter podido respirar tranquilamente, ainda que sangrando e sofrendo junto com o povo! Eu queria ter tido tempo para produzir algo que transmitisse, com máxima singeleza possível, palavras de conforto para as famílias, apesar de que o tempo é elixir mais potente, para apaziguar dores com perdas. Mas palavras, ainda que simples ou singelas, são pequenos frascos de carinhos que abraçam e acalentam em doses homeopáticas, fazendo efeito com curta duração, momentos críticos de forte comoção. No entanto, o curso das factuais tristezas corre em marcha febricitante feito correnteza de um curso de águas bravias, em que a torrente vai mais rápida do que um tiro, mal dando tempo de recuperar de um dos maiores acidentes aéreos envolvendo atletas e jornalistas! Que sucessivas tragédias em tempo recorde, no apagar das luzes de 2016! Final de ano triste/ versus cenário horripilante na política brasileira! Sucessivos golpes na cara do povo com escândalos que caem aos borbotões. Descaramento dos pestilentos representantes do povo na Câmara Federal, intensificado com o luto, a dor e a revolta com a tragédia aérea, dando asas, na calada da madrugada, a parte mal intencionada da política! Que esculhambação e deboche, desfigurando o projeto popular com dois milhões de assinaturas! Que negociações ardilosas e escusas! Mais uma ação criminosa na nossa cara, sem dar tempo de nos recuperar, para retornar às ruas para gritar em alto e bom tom: FORA CORRUPÇÃO! Mas o ser pústula, desvairado pelo poder, status, vida boa, desonrosa, desonesta, à custa do erário público, para custear seus vícios e luxos, fala muito mais alto do que qualquer tragédia! Tudo ao bel-prazer do faz-de-conta que vai, independentemente da vontade do povo, pois o povo que se dane! Tudo ao bel-prazer da parte podre da política brasileira! Onde estão, a decência e o respeito pela vida dos cidadãos? Como se não bastasse a dor extraordinária pelo passamento dos chapecoenses, o avião brasileiro da democracia, do bem comum, está no ar sem combustível suficiente para chegar ao aeroporto da decência e da honestidade. Até quando continuarão embarcando nossos sonhos e nossas esperanças de um país melhor em aeronaves sem combustível? Somos assassinados covardemente, todos os dias, em voos sem planejamento. Piedade de nós, Senhor, eles sabem o que estão fazendo! Oremos pelos que ficam nesse plano de voo de estultices. Oremos pelos os que saem às ruas protestando por um Brasil melhor, mais digno e mais igualitário. Oremos para os estudantes, pois não sei a rota do voo da Educação! Oremos para os que precisam usar o Sistema Único de Saúde, para que não morram nas filas de espera por atendimentos! Oremos por todos os serviços públicos! Oremos para que o povo tenha força, sensatez e união, para extirparem da vida pública, pústulas que mancham a verdadeira Política! Oremos para o povo daqui de baixo! Oremos pelas famílias dos que partiram; apesar de a prece ser necessária na vida e na morte, rezemos mais pelos que ficam, pois os que foram não verão tamanha estultícia no transcurso da história da política brasileira. Aqui, por enquanto, jazem a democracia, a decência, a honradez, a igualdade…
Eu queria preencher páginas e mais páginas homenageando os heróis do futebol, do jornalismo que partiram, mas minhas palavras não são pequenos frascos de carinhos que acalentam dores em doses homeopáticas, são duras, cortantes, revoltosas, dribladas com astúcia, por um punhado de políticos anti-heróis. Que eu não perca a poeticidade, mesmo que ela esteja adormecida nas asas espatifadas de voos mal planejados.
Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.