Crônica: Escrita, livros, aves e xixi — Andreia Donadon Leal

Escritora Andreia Donadon Leal

 

Escrita, livros, aves e xixi

Andreia Donadon Leal

 

MARIANA [ ABN NEWS ] — Recebo cartas pelo correio e pela internet, com frequência. A maioria fala sobre leitura, livros e escrita. Nunca recebi tanta correspondência de adolescentes, que leram minhas obras ou de outros autores, trazendo perguntas e questionamentos sobre o processo de criação literária e edição de livros. A grande maioria dos mensageiros pede dicas milagrosas, para escrever de forma criativa ou inovadora. Milagres vêm de forças Divinas, respondo sem pestanejar. Deus, santos e anjos não costumam priorizar clamores de seres que não fazem por merecer. O número de pedidos é infinito. E no seu caso, candidato a escritor, a solicitação será jogada na fila do Spam Divino. É que quase tudo hoje é feito automaticamente. Após trinta dias seu pedido será enviado diretamente para a lixeira. De modo, que o processo criativo é ativado pela mente interessada e em atividade, que se alimenta diariamente por leitura de livros, e observação por tudo que passa ao seu redor. Simples assim; simplicidade que dá trabalho! Não é ler ou observar esporadicamente, com um olho na paisagem e outro no celular; ou um olhar superficial na moça de andar bamboleante, e outra mirada chocha no rapaz, que corre do outro lado da rua de forma única. Se cada detalhe ou gesto não for motivo central, para se deitar palavras sobre o papel, o futuro escritor perde oportunidade de se esbaldar com o manjar dos deuses colocado à disposição. Se cair um pingo de chuva no asfalto seco, é motivo para soltar a imaginação e as palavras sobre o papel; se cair um único pingo do céu, sem localização do responsável pelo acontecimento, é razão para preencher linhas e mais linhas, sobre o mistério dos pingos fantasmagóricos que surgem do nada da rachadura da abóboda celeste. Talvez o pingo possa ser também de alguma ave que fez xixi, sem querer, no auge do seu pouso. (…) Pausa. Nunca vi ave fazendo xixi! Somente hoje me veio este questionamento. Coloco as mãos no rosto, confusa e perdida. Estou no salão aguardando a tintura colorir um punhado de fios de cabelos brancos. Olho para a moça ao lado, com uma touca atochada na cabeça. Não me reparou; está navegando na internet, em seu celular. A outra, com máscara hidratante nos cabelos longos, masca chiclete ruidosamente e de boca aberta, lendo revista de moda. Atendentes munidas com secadores potentes e barulhentos, entretidas no ofício mecânico de escovar e enrolar mechas de cabelo. Queria perguntar se alguém já viu alguma ave fazer xixi. Reviro minhas lembranças sobre pássaros, não me lembro. Como posso ter vivido mais de quarenta anos sem saber responder se uma ave faz xixi?! Nunca me atinei para isto. Juro que vi inúmeras vezes, as aves do pai tomarem água do potinho de plástico. Lembro-me até da cor da vasilha: amarela. De onde sai o xixi? Deu-me uma vontade quase incontrolável de perguntar aos berros:

“Alguém aí sabe me dizer, se ave faz xixi? Já viram? Quando? Não viram? Não sabem, também? É normal não saber? Nunca pensaram nesta questão?”

Ridículo e sem propósito, chamar a atenção de todos os clientes e empregados do salão, para dividir dúvida que começava a revirar as entranhas dos meus pensamentos. Precisava saber, com urgência! A moça que mascava chiclete poderia deixar de querer comer a revista com os olhos, e olhar para mim. Iria lhe perguntar discretamente. A outra, que estava assentada ao meu lado, poderia ir ao banheiro, ficando por lá bons minutos, deixando o celular no sofá. Eu o pegaria emprestado rapidamente, para pesquisar no Google, se uma ave faz xixi. Ninguém arreda o pé do lugar. (…) Para não dar trégua e nem tempo de o leitor respirar, mudo de assunto propositalmente, daqui mesmo, no mesmo parágrafo, sobre o processo de criação. Se uma folha cai, é motivo para falar sobre a sua transformação depois da morte, e da outra que nascerá em seu lugar, num processo vivo e contínuo da natureza. Nada morre, nada se perde, tudo se transforma. Se alguém assovia no meio da madrugada, acompanhando o canto solitário do galo, é motivo para falar da orquestra sinfônica noturna de fazer ninar notívagos. Se vejo um pássaro (lá vem a ave de novo, tento não pensar no xixi!) lançando voo rasante no céu estalando de azul, é motivo para falar sobre o encanto das cores pintadas pela paleta do céu, e do desejo de o pássaro querer fazer ode ao espetáculo das cores, encenando seu mais belo ruflar de asas.

Lorotas, voltas e viagens é que não faltam ao escritor criativo, que anda com as antenas sempre ligadas (ao ponto de o cérebro criar asas e sair voando!). Cabe ao escriba, olhos de telescópio, amor pela leitura, paixão pelas coisas da vida, para preencher de forma única, laudas e mais laudas encantando o leitor, com sua escrita, feito ave em seu canto de tenor que solta a voz, de forma bela e harmoniosa, para todos ouvirem. Até aqui tudo bem. E de onde sai o xixi das aves, então? Assunto abortado? Chegando à casa, pesquiso no Google: “Aves não fazem xixi”. Sabem o motivo? “Elas não têm bexiga para armazenar urina”. Mas bebem água. E de onde sai aquela água que elas bebem? Do suor? Da cabeça? Dos orifícios camuflados pelas penas? “Quando as aves ingerem líquidos, eles vão direto para o intestino, onde é absorvido, depois para o sangue, e chega aos rins, para ser purificado”… Matada a curiosidade, ocorreu-me outra… Não é questionamento, apenas observação de pensamento liberto. Se os líquidos que ingerimos fossem diretamente para o intestino, idas ao banheiro em bailes, festas, casamentos, viagens, cairiam absurdamente, para a alegria e comodidade de todos. Impossível, cientificamente falando. O Chefe lá de cima fez tudo direito, cada um com sua particularidade. Mas que seria uma mão na roda seria: ninguém precisar interromper alguma coisa para fazer xixi!

 

Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.