Mulher tem força para isto?
Andreia Donadon Leal
MARIANA [ ABN NEWS ] — Bebê chorava profundamente. Pulmão e garganta super potentes para liberar gritos lamurientos, que se espalhariam pelos cômodos, até serem ouvidos nos apartamentos dos vizinhos.
“Nana nenê. Shiiiiii!” Sua mãe dizia sofregamente, balançando-a sem parar.
O pai da criança faria rodízio no início da madrugada, ninando o bebê que ora resmungava, chorava e calava. Levaram-no a diversos especialistas para descobrirem a causa do efetivo choro notívago.
“A menina tem nada não, pais!”
Foram a outros Pediatras, Médicos, Especialistas. Levaram-na à capital. Fizeram todos os exames permitidos, para diagnosticar motivo de choro insistente. Nada de doença. E ela continuava dando trabalho de madrugada para os pais. Chorava e chorava, até lá pelas tantas. Para auxiliar o casal que trabalhava dias inteiros, a tia mais nova viajou até a cidade vizinha. Balançava delicadamente o bebê, até ele se cansar de chorar, por volta das 4:00 da matina.
“Este bebê chora com força!”
“Não tem problema de saúde. É mulher!”
“O choro está diagnosticado, então. Se fosse homem não choraria dessa forma. Bebês do sexo feminino choram mais do que do masculino!”
“Quando crescer vai continuar chorando!”
Estas bobagens eram ditas por alguns parentes, vizinhos e médicos. Nada disto os abalava. Os pais dela seguiam firmes e fortes, fazendo rodízio para acalentá-la nas madrugadas passadas em claro, pelo bebê e por um membro da família. Outra tia foi passar feriado prolongado na casa da irmã, para descansar os pais. Levou, em sua bagagem, diversos livros de literatura infantil. Ela preparou o pulmão potente, soltando o berreiro no início da madrugada. Sua tia pegou-a no colo, sentando no sofá com a guria. Abriu o livrinho que estava na mesinha ao lado. Limpou a garganta e começou a ler para o bebê, que a olhava com curiosa atenção, até intermediar choro com gemidos, dormindo finalmente até o início da manhã. Nos dias posteriores usou a mesma tática. Contou para a família, quando teve certeza de que o bebê precisava de leitura antes de dormir. A notícia alvissareira foi recebida por todos com extremo contentamento. Seus pais compraram um punhado de livros. As irmãs foram embora para cuidarem de suas vidas. Ela parou de chorar de madrugada, exceto nos dias em que adoecia. Mas o achincalhamento e a fama de chorona continuavam a pairar sobre a menina, que crescia, crescia e crescia vertiginosamente. Adolescente de corpo delicado, com curvas suaves; pele clara, cabelos finos, com discretos anéis nas pontas; poucas sardas no rosto ovalado. Nem alta nem baixa. Estatura mediana. Amava leitura, de uma forma contundente e definitiva. Os livros abarrotavam o armário do quarto, ao ponto de ela arredar as roupas para ocuparem espaço minúsculo e secundário no guarda-roupa. No início da noite: lia, lia e lia, sem falhar um dia. A menina passou feito relâmpago pela pré-escola, pois sabia decifrar palavras, compreendendo perfeitamente as histórias dos livros, recriando-as com sabedoria e criatividade. No mesmo ano foi do pré para a segunda série. A parentada quase não chamava a menina de bebê chorão, pelas costas. Era forte, concentrada, capacitada, inteligente, madura para idade.
“Vai querer ser o que quando crescer”?
“Médica, talvez Engenheira. Cedo pra saber!”
“Médica? Provavelmente Pediatria, Dermatologia ou Oftalmologia. Geralmente mulheres escolhem estas especialidades. Tudo a ver com elas!” Disse um tio, sorrindo.
Ela respondia com voz musicalizada, sem se alterar, que não sabia. Mas soube, pouco antes de entrar para a universidade, que sua paixão era pela Neurocirurgia. O ex bebê chorão tornou-se cada dia mais forte. Não forte feito rocha, mas na normalidade de uma pessoa obstinada, que passa horas e horas estudando, para alcançar objetivos. Lá pelos tantos períodos cursados com maestria, o professor pergunta, com curiosidade para a acadêmica:
“Vai querer se especializar em quê?”
“Neurocirurgia!”
O Professor Doutor levantou a sobrancelha direita, esticando os lábios.
“Algum problema, professor?” Perguntou ela, revirando os olhos.
“Sabe quantas mulheres são Neurocirurgiãs?”
“Não… Quantas?”
“Nenhuma!”
“Nossa! Serei eu a primeira?”
“Talvez, não dá pra saber se será a primeira! Não sei se depende só de você, mas sei que vai ser custoso!”
“Fiz minhas pesquisas sobre a atuação de mulheres na Medicina e descobri que algumas são quase que exclusivamente masculinas, como a Neurocirurgia, a Proctologia e a Ortopedia: dependem de força. Mas fiquei sabendo que um dos melhores Proctologistas é uma MULHER! O senhor deve saber, pois tem mais do dobro de minha idade, e sei lá quantas vezes de sabedoria e experiência…”
“Tive uma estudante que escolheu ser Ortopedista. A especialidade é ocupada, em sua grande maioria, por homens. Nenhum problema em relação à opção dela. Mas a estudante resolveu se dedicar ao máximo para ser Ortopedista. Estudou triplicado. Foi a melhor aluna da classe, por dedicação e força de vontade excepcional. Acabou se tornando, consequentemente, referência na área. Entendeu? Eu sei que não preciso falar mais nada pra você…”
Ela foi embora para casa, mais decidida a se tornar Neurocirurgiã. Sabia que teria que dobrar e redobrar nos estudos, em uma comunidade médica machista. Teria que chorar por dentro, sem deixar transparecer. Teria que tolerar em dobro, possíveis piadas. Tinha obstinação, para o longo caminho a ser percorrido. Potência não lhe faltaria, aprendeu desde bebê a chorar firmemente, com pulmões e garganta super potentes, até ser compreendida pela família. Já provou de achincalhamentos na infância e adolescência, e não seria agora, na face adulta, que desistiria. Aprenderia a liberar outros gritos para seguir em frente, passando por possíveis preconceitos, até na Medicina. Ora, ela quer e pode ser Neurocirurgiã. Alguém duvida disso?
Andreia Aparecida Silva Donadon Leal – Deia Leal é Mestre em Letras – Estudos Literários pela UFV. Presidente da ALACIB. Diretora de Projetos Culturais da Aldrava Letras e Artes.